“O Cangaceiro” é um dos muitos tesouros escondidos no interior de São Paulo
- Fernanda Gonçalves
- 14 de out. de 2019
- 6 min de leitura
Uma história sobre o sertão, Cangaço, amor, honra e sacrifício, a primeira produção cinematográfica brasileira a ganhar prêmio internacional, foi filmada em Vargem Grande do Sul
Lançado em janeiro 1953, o filme “O Cangaceiro”, que conta a história do Capitão Galdino Ferreira e seu bando na caatinga nordestina, ao contrário do que se imagina, não foi não filmado no sertão nordestino, mas sim no interior de São Paulo, em Vargem Grande do Sul.
O longa-metragem, escrito e dirigido por Victor Lima Barreto, que é natural de Casa Branca (SP), foi o primeiro filme brasileiro a ser premiado no Festival Internacional de Cannes, na França, na categoria “Melhor Filme de Aventura”, no ano de sua estreia.
No mesmo Festival, a produção também ganhou menção especial de “Melhor Trilha Sonora”, com “Mulher Rendeira”, música interpretada por Vanja Orico, acompanhada pelo coro dos Demônios da Garoa, totalizando duas “Palmas de Ouro” em Cannes. Com o sucesso em Cannes, “O Cangaceiro” foi exibido em mais de 80 países e ficou por cinco anos em cartaz na França.
Ainda em 1953, o longa levou o prêmio de “Melhor Filme” no Festival de Edimburgo, na Escócia, além de outros 34 prêmios do cinema internacional.
Em novembro de 2015, o filme sobre o Cangaço entrou para a lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, na 64ª posição.
Sem verbas para levar a equipe ao nordeste brasileiro, Lima Barreto, que é natural da cidade vizinha Casa Branca, elegeu Vargem para a filmagem, em razão das semelhanças da cidade, do Sudeste brasileiro, com a caatinga nordestina. A produção foi rodada pela companhia cinematográfica Vera Cruz e depois vendida à Columbia Pictures.
A trama
Inspirado na aventura do Lampião, o diretor Victor Lima Barreto contou a história do bando de cangaceiros do Capitão Galdino Ferreira, interpretado por Milton Ribeiro, mostrando a brutalidade, religiosidade e o código de honra daqueles que devastavam o Nordeste na década de 1930.
No Cangaço, cada bando tinha seu código e a palavra do chefe era uma ordem de vida ou de morte. A população, que morava em pequenos vilarejos isolados uns dos outros, vivia à mercê daqueles que eram os reis do sertão.
No longa, que conta a história do cruel Capitão Galdino Ferreira e seu bando de cangaceiros no Nordeste do Brasil, os reis do sertão sequestram a professora Olívia (papel de Marisa Prado), com o intuito de receber um resgate por ela. No entanto, com o desenrolar da história, Teodoro, interpretado por Alberto Ruschel, um dos homens do capitão Galdino, se apaixona e foge com a moça pelo árido sertão; o casal é perseguido pelo bando. O amor se torna recíproco e Olívia pede que Teodoro deixe o Cangaço e se mude para a cidade. O jovem, que ama sua terra, diz que gostaria de morrer no sertão onde nasceu.
Marcações no tempo
De acordo com os registros do historiador vargengrandese Mario Poggio Junior, de 63 anos, a filmagem foi feita em diversos locais da cidade, dentre eles, a Igreja de Santo Antônio, na Vila Polar, e a Casa da Cultura, onde na ocasião funcionava a Cadeia Pública.
Segundo Poggio Junior, as principais cenas se concentraram em três pontos da cidade. Na Vila Polar, foi gravada a cena da queima da casa; nas adjacências do Rio Jaguari-Mirim, a cena em que Teodoro compra o colar do índio para presentear Olívia; e no Bairro do Pacaembu, as cenas dos tiroteios, próximos ao final do filme.
Em sua pesquisa, o historiador constatou que o rio do local onde faleceu Teodoro é artificial e foi construído, atrás do estádio Vargeana, com a água de um caminhão pipa, disponibilizado pela prefeitura.
Poggio Junior, que se mudou para São Paulo aos 19 anos, lamentou a pouca valorização da produção brasileira, que foi gravada em sua cidade natal poucos anos antes de seu nascimento: “Infelizmente, a bilheteria foi baixa e somente quando o filme passou nos cinemas de Paris, fizeram o relançamento nos cinemas nacionais”.
Para ele, “A importância desse longa para o cinema brasileiro é o reconhecimento que ele traz. Embora os jornalistas citem ‘O Pagador de Promessas’, ‘O Cangaceiro’ foi o primeiro a ser premiado no exterior, o que abriu a visão do mundo para o cinema nacional. Para a cidade, a notabilidade foi a projeção de Vargem Grande do Sul para o resto do país e para o mundo, o que, infelizmente, nunca foi explorado. Como prova, em minha última ida à cidade conversei com um morador de mais de 30 anos no município, que não sabia do fato”, pontuou.
A partir de jornais de grande circulação de São Paulo, Poggio Junior realizou um estudo aprofundado sobre como foi a divulgação do filme na época. “Ao pesquisar, ficamos surpresos com o fato de que a divulgação do filme no Brasil foi pífia e baixa. Começaram a citar um pouco mais quando houve a consagração internacional, em especial, com a grande presença do público em Paris. Infelizmente, no Brasil temos este grande problema de não valorização dos nacionais”, lastimou.
Ao vivo e em cores
O vargengrandense José Alberto Aguilar Cortez, de 71 anos, tinha cinco anos na época das gravações. Atual professor-doutor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP) e diretor da Fitcor Aptidão Física e Saúde, ele contou como foi presenciar as filmagens junto a seu pai. “Meu pai tinha automóvel naquela época e me levava junto para assistir, então tive a oportunidade de presenciar algumas. Assisti, à distância, tomadas que foram realizadas no Rio Jaguari, na Vila Polar, e na pedreira da caixa d’água, mas nada tão impactante quanto vê-los de perto, ouvindo a respiração dos cavalos escondido e com medo”, disse.
Sobre um momento inesquecível das filmagens, José conta: “A cena mais marcante para mim, como criança, foi ver vários cavaleiros armados, com cara de poucos amigos numa cidade pacata, como era a nossa e sem acontecimentos marcantes como a realização de um filme”, comentou.
“Eu tive a sensação de medo quando os cangaceiros, todos a cavalo, pararam para ver as moças que trabalhavam na fábrica de bonecas de porcelana que meu pai tinha e que ficava perto da caixa d'água. Os artistas ‘cangaceiros’ paravam, com o Milton Ribeiro liderando, e paqueravam as garotas da fábrica. Lógico que elas iam todas para a calçada e eu ficava escondido atrás de um dos portões, observando pela fresta a cara de mau que o Milton Ribeiro que fazia para as funcionárias”, relembrou.
Para Cortez, o filme é muito importante para o cinema brasileiro pelos prêmios que trouxe para o país. Na cidade, segundo ele, a produção, na época, rendeu fofocas e namoros ocultos.
Ele ainda contou que o longa passou despercebido durante muito tempo e há cerca de 30 anos a TV Cultura produziu um documentário sobre ele, mas com informações erradas. “No documentário, a artista principal, Vanja Orico, disse que o filme tinha sido filmado no sertão da Bahia. Fiquei indignado e liguei para a emissora apontando o equívoco, mas quem me atendeu disse que não poderia corrigir porque o que eu estava assistindo era uma gravação. Novos comentários sobre ‘O Cangaceiro’ surgiram durante a gravação do ‘Meu nome é Tonho’, mas nesta oportunidade eu já morava em São Paulo”, falou o professor.
“Recentemente a nossa Casa da Cultura fez um evento muito interessante sob a direção da Márcia Iared e da Maria de Lourdes Cagnoni Dutra, com informações sobre o filme”, completou.
Documentário acadêmico
O filme, que já foi tema de exposição realizada pela Casa da Cultura em 2017 e ganhou um local para exposição permanente do acervo em agosto de 2019, também foi tema do documentário ‘A Cidade do Cangaceiro' produzido em 2011 pelos vargengrandenses Mateus Fiorini, Marcelo Fiorini e Júlia Felipe, que são ex-alunos de Comunicação Social da Unifae.
No mesmo ano, os jornalistas também produziram o documentário 'O Cangaceiro de Lima Barreto', que conta a história do diretor Victor Lima Barreto, que morreu desconhecido em 1982, em um asilo na cidade de Campinas (SP).
Mateus contou que os curtas-metragens foram produzidos no primeiro semestre do curso pelo projeto de extensão História Vida, que era coordenado pelo atual reitor da instituição, professor-doutor Francisco Arten.
“Quando meu irmão e eu entramos na Unifae, nosso objetivo era fazer o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre o ‘O Cangaceiro’ e sobre as filmagens dele. Mas aí, logo no início, o professor Arten nos apresentou o projeto História Viva e decidimos fazer o documentário e depois encontrar outro tema para o TCC”, disse.
“Nós sempre acreditamos que era um tema que deveria ser conhecido por todos, principalmente por vargengrandendes, que muitos conheciam o filme, mas nem sempre sabiam que tinha sido gravado aqui”, lamentou.
Para Mateus, a escolha de Vargem para essa filmagem fez com que a cidade alcançasse reconhecimento. “Mesmo naquela época, sem recursos e sem efeitos, ele conseguiu chamar a atenção de muita gente importante. Para a cidade, foi crucial, elevou o nome dela a outro patamar, o que ajuda a recordar o passado e preservá-lo”, comentou.
‘O Cangaceiro’ está disponível no Youtube, no link https://www.youtube.com/watch?v=oOumq-kWf-Y

Exposição permanente sobre o filme foi inaugurada em Vargem


“O Cangaceiro” completou 67 anos de filmagem em 2019

Revólver utilizado na gravação do filme faz parte da exposição realizada em Vargem

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