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A menina que brincava com os mortos

1


Não se sabe o que aconteceu na casa dos Vilela. Foi Sisi a empregada que encontrou os corpos e as manchas de sangue. A mulher alega ter escutado gritos e pancadas e foi por isto que teve medo de entrar na casa aquela noite. A polícia chegou meia hora depois do telefonema desesperado de Sisi, mas já era tarde, toda a família estava morta, com exceção do gato Zuzu. O gato pertencia à pequena Malía, de oito anos, que estava desaparecida. Nenhum sinal de arrombamento, nenhum bilhete, apenas sangue, corpos e móveis quebrados. O que aconteceu de fato é difícil de explicar, doloroso de ouvir, mas é necessário contar. E que fique claro, a história não vai ter nenhum final feliz.

Tudo começou no dia 27 de abril de 1995, outono, folhas secas, nem frio nem calor, a época favorita da pequena Malía. A garotinha estava brincando no chão da sala enquanto a mãe, Carmen, costurava. Sisi, a empregada, estava preparando o jantar quando Thadeus, o padrasto de Malía, chegou de viagem. Ninguém além de Malía sabia que Thadeus era um homem mau. Ele doava dinheiro para igrejas e orfanatos, pagava faculdade para pelo menos 5 pessoas, amava os animais e tratava Carmen como uma rainha. Mas ainda assim, era um homem mau.

“Querido, você em casa tão cedo?” Disse Carmen sem disfarçar sua felicidade em ver o marido. “ Pensei que voltaria só na segunda. “

“Que cheiro é este? ” Perguntou Thadeus.

E foi assim que as coisas começaram a se deteriorar, com a vinda do cheiro. A primeira pessoa a sentir foi Malía, até porque o odor vinha de seu quarto. Sisi sentiu duas semanas depois. A pobre moça esfregou o chão e as paredes do quarto de Malía, mas aquele maldito cheiro não ia embora. Carmen percebeu em seguida e pediu para que Sisi esfregasse tudo novamente e a mulher o fez, mas nada adiantou. Era um odor desagradável, podre, como se algo morto estivesse dentro da casa, e estava.

“Não sabemos de onde está vindo.” Carmen começou a explicar. “Já pediu a Sisi para limpar tudo uma ou duas vezes. Se ao menos soubéssemos de onde vem...”

“Vem do quarto da pequena Lia, dona Carmen. ” Sisi gritou da cozinha. “Já limpei um monte de ‘vez’ e nada. ”

“Algum animal pequeno deve ter morrido no encanamento da casa. ” Thadeus palpitou.

“Eu conheço um moço que faz esse tipo de serviço, sô Thadeu. “ Sisi agora estava na sala. Pele enrugada, o cabelo branco preso em um coque, mãos sujas de massa, olhos cansados e sofridos. Ninguém poderia imaginar que em alguns dias ela e Zuzu, o gato, seriam os únicos sobreviventes daquela casa. “Tira ‘os bicho morto’ de tudo quanto é lugar. “

Thadeus aceitou a sugestão de Sisi e ligou para o tal homem que aceitou ir à casa da família Vilela logo pela manhã. Malía, que dormira com o fedor em seu quarto por duas semanas, ficaria no quarto de hospedes até o problema ser resolvido.

O que ninguém desconfiava era que Malía já estava ciente do causador de todo aquele mau cheiro. A menina torceu para que Thadeus não decidisse ele mesmo procurar o suposto animal morto depois que terminou a ligação com o homem “que fazia esse tipo de serviço, sô Thadeu”. A garota não queria que ele descobrisse o que ela escondia em seu pequeno armário cor de terra e suspirou aliviada quando Sisi anunciou que o jantar estava pronto. Todos ocuparam seus lugares na mesa sem demora. A mesa estava farta. Tinha arroz, feijão, batatas, salada e todo tipo de carne. Sisi serviu todos e também se sentou. A família Vilela fazia questão que ela se sentasse com eles. Tudo estava uma delícia e por um momento eles se esqueceram do cheiro ruim.

Malía foi a primeira a terminar. A menina mal conseguia disfarçar a sua pressa de deixar a mesa. Ela ficaria no quarto de hospedes como seu padrasto havia orientado, mas assim que todos estivessem dormindo ela voltaria para o seu quarto oficial. O que ela guardava em seu armário era o real causador de toda a morte que viria em alguns dias.


2

Receio ter que fazer uma breve pausa na história para explicar um acontecimento trágico. Loretto morreu em um tiroteio. Ele completaria 48 anos no dia seguinte de sua morte e estava se preparando para uma grande viagem. Infelizmente a viagem nunca chegou a acontecer, mas garanto que ele morreu feliz e pensando em Malía. Caso você, leitor, ainda não tenha associado a ambos, Loretto e Malía eram pai e filha. Eles se amavam muito, mais do que qualquer outra coisa no mundo, e eu não consigo pensar em nada mais doloroso do que a separação dos dois. No dia da morte, Loretto foi ao banco fazer um empréstimo para enfim dar início aos planos de viagem. Ele levaria a filha para conhecer três cidades diferentes nas férias de verão. Loretto já estava no banco aguardando quando um homem chamado Silas entrou no banco atirando. O boato é que Silas tinha um alvo que estava dentro do banco, – a esposa que o traiu e o abandou – mas acabou fazendo mais vítimas.

O primeiro tiro atingiu uma das atendentes bem na barriga. A mulher estava grávida e perdeu o bebê na hora. O tiro seguinte acertou a cabeça de um homem que esperava sentado. Voaram pedaços de cérebro e carne por toda a parede. O que deveria ser o último tirou atingiu a ex esposa do atirador, uma mulher loira chamada Teresa. O tirou foi no coração e ela não demorou muito a morrer. Quando Silas terminou o que fora ali para fazer, Loretto resolveu agir. Ele atacou o atirador e levou um tiro no olho. A bala atravessou seu crânio e espalhou pedaços de pele, cérebro e ossos por todo o banco. Loretto estava morto, no chão do banco, pois havia tentado salvar o dia.

Malía ficou arrasada com a notícia. A pequena era muito apegada a seu pai e perdê-lo foi como perder o hábito de respirar. Ela entrou em depressão profunda e nenhum especialista conseguira ajudá-la. Malía se recusava a sair do quarto, comer, falar e até mesmo brincar. Carmen tentou de todas as formas confortar a filha, mas o luto tomara conta da pobre garota. Até que um dia Loretto apareceu na porta do quarto da filha. A garota escutou gemidos e um batida fraca. Ela se levantou, caminhou até a porta e hesitou abrir, mas abriu. O pai estava parado na sua frente, não respirava e continuava morto, mas ali estava ele. A aparência de Loretto era horrível e repugnante. A carne dele estava podre e tinha um cheiro muito ruim. Ele não tinha um dos olhos devido ao tiro e no lugar havia um grande buraco que permitia ver dentro da cabeça dele. As roupas estavam rasgadas e sujas de terra – terra do cemitério. No buraco onde deveria estar os olhos escorria pus e também cheirava mau. Ele estava morto, mas estava ali e Malía o amava.

Daquele dia em diante a menina melhorou o emocional e passou a brigar, falar, sair do quarto e comer. Mas principalmente, começou a conviver com o pai novamente. Ela o escondia dentro de seu armário, às vezes em baixo da cama. A casa toda ficava fedendo a morte, mas ela não se importava. Ele era seu segredo e não se cansava de amá-lo. Ela passava as noites em claro, brincando com o pai.

E esta é a grande verdade: o que estava morando no armário da menina era um cadáver humano.


3


Depois do jantar, Malía correu direto para o quarto de hospedes. Não demorou muito para o restante da família também terminar de comer e ir para a cama. Sisi visitou Malía para perguntar se precisava de alguma coisa, mas a garota tranquilizou a empregada que logo voltou para o seu próprio quarto. Agora todos estavam dormindo e casa estava silenciosa, exceto, talvez, pelos roncos de Thadeus. Malía levantou-se, calçou as pantufas do Pernalonga e correu para o quarto ao lado. Ela tomou o máximo de cuidado para não fazer nenhum barulho e entrou. O cheiro era mais forte lá dentro e parecia que era ainda mais escuro que qualquer outro cômodo da casa. A menina fechou a porta atrás de si e acendeu a luz. Caminhou vagarosamente até o pequeno armário no canto esquerdo do quarto e parou da frente do mesmo.

“Papai?” ela sussurrou alegre “Papai, já pode sair.”

Silencio.

“Papai?”

Nada.

Então ela abriu a porta e ele saltou em cima dela. Os dois estavam no chão, Loretto, o morto, por cima da criança viva. Ela gargalhava e tentava se soltar da brincadeira do pai. Ele não podia rir, mas com certeza faria se pudesse. Ele estava feliz, ela estava feliz. E eles brincaram a noite toda.

Infelizmente um homem morto faz muita bagunça. Hora um dedo que se desprendia, e era rapidamente costurado de volta pela menina (ela pedira a Sisi aulas de costura), hora o chão ficava todo sujo e pus, hora insetos se acumulavam nas feridas de Loretto e voavam pelo quarto conforme ele se movia. Eles se divertiam, minuto após minuto, pai e filha, morto e viva.

4


No dia seguinte, Thadeus chamou o homem que procuraria a fonte do cheiro, mas ele não encontrara nada. Thadeus tirou o dia de folga e decidiu ele mesmo procurar, mas também sem nenhum sucesso. Os dias se passaram e o cheiro continuava e ninguém entendia o motivo.

Malía continuava encontrando seu pai durante a madrugada e às vezes ele precisava deixar a casa para que ninguém o encontrasse nas buscas pelo cheiro misterioso. Mas foi em uma noite de quinta-feira que Malía esquecera de pedir para que o pai saísse, e enquanto eles brincavam, alguém bateu na porta.

“Malía, é você ai dentro?” era Carmen “Querida, nós não pedimos para você dormir no quarto de hospedes? O cheiro ai dentro é muito forte. Saia logo daí!”

A menina não respondeu, apenas gesticulou para que o pai se escondesse no armário e ele o fez. Malía destrancou a porta e a mãe entrou.

“Filha, o que você está fazendo aqui dentro? Este cheiro...” Carmen reclamou.

“Eu senti falta do meu velho quarto, mamãe” a menina mentiu.

“Querida, é melhor você voltar para o quarto de hospedes. O cheiro... eu não sei como você está aguento. Parece...” então Carmen olhou para o armário. “... Que está vindo do seu armário.”

Malía tentou de todas as formar impedir que a mãe chegasse até o armário. Ela insistiu para que as duas fossem até o quarto de hospedes e até mesmo apelou para o medo. Eu estou com medo mamãe, vamos dar o fora daqui, ela murmurou e falhou. Carmen já estava caminhando em direção ao armário. A mulher também parecia estar com medo, medo real. Ela se aproximava lentamente, um passo de cada vez. Mamãe, por favor, vamos sair daqui, a menina ainda persistia, mas Carmen continuou. Mamãe, não faça isso, e a mulher não parava. Mamãe, eu estou implorando, mas Carmen já estava com suas mãos na porta do armário. Ela hesitou por alguns segundos, Malía se afastou e aguardou seu segredo ser revelado. A mãe hesitou por mais alguns instantes, que para Malía pareceram uma eternidade, e então finalmente abriu. Loretto saltou para cima de Carmen e ambos caíram no chão. Desta vez ele não fizera para brincar, como havia feito com Malía algumas noites atrás. Ele queria machucar Carmen e o fez. O homem morto começou arranhando os braços da mulher. As unhas estavam podres, mas arrancaram pedaços de carne do braço da mãe da menina. Depois ele começou a bater a cabeça dela no chão. Bateu uma, duas, três, quatro vezes. Malía se encolheu quando viu sangue escorrer de uma fresta que se abriu na cabeça da mãe. Por fim, o morto mordeu o pescoço da mulher e puxou um grande pedaço de pele. Ele abocanhou mais uma vez e começou a mastigar. Mastigou, mastigou, mastigou até alcançar o osso. Sangue jorrava por toda parte. Carmen já estava morta, mas Loretto continuou a comê-la. Malía apagou a luz, deitou em sua velha cama e se cobriu. Ela continuou ouvindo o pai devorando os pedaços restantes daquilo que costumava ser sua mãe. Durou a noite toda. Malía não conseguiu dormir por causa do barulho de seu pai morto jantando sua mãe.

5


No dia seguinte a menina levantou cedo e limpou o chão de sangue. O pai morto tentou ajudar, mas sempre que tentava um dedo ou até mesmo a mão se desprendia do corpo. A menina não conseguiu tirar por completo a mancha de sangue (já não havia corpo, só sangue), então trancou o quarto e passou a ficar no quarto de hospedes. Durante todo o dia Sisi e Thadeus perguntavam onde estava Carmen. O dia terminou e eles começaram a ficar preocupados, principalmente Sisi. Já fazia quase 24 horas que a mãe da menina havia desaparecido, mas Thadeus ainda não se preocupara em chamar a polícia. Ela deve estar na casa da irmã e se esquecera de avisar, ele tranquilizava Sisi, que estava morta de preocupação. Já Thadeus pouco se importou. Ele era um homem mau, como Malía sempre o chamara.

6


Nossa história está chegando ao fim. Finalmente chegou a hora de dizer o porquê a pequena Malía considerava Thadeus, um homem rico, religioso e que ajudava muitas pessoas, um homem ruim. Quando completou 48 horas do desaparecimento de Carmen, Thadeus ainda não havia demonstrado um pingo de preocupação. Ele continuou seus afazeres e até mesmo dispensou os serviços de Sisi por aquele fim de semana.

“Malía, querida, venha aqui” o homem ordenou. Malía estava no quarto desenhando. Desde o dia em que sua mãe morrera que ela não via o pai.

“O que o senhor quer?” ela gritou com arrogância.

“Eu só quero conversar querida. Desça aqui um instante.” E Malía foi, já esperando o que aconteceria. Ele sempre dizia a mesma coisa: que só queria conversar. E então ele a machucava, como já fizera antes.

A garota desceu as escadas e foi ao encontro do homem mau. Ele estava em pé na sala olhando para ela. Thadeus estava sem as roupas e olhava para sua enteada daquele jeito que ela odiava. Ele a machucaria de novo, aquele olhar terrível entregava que ele a machucaria.

“Venha até aqui, meu bem.”

Meu bem.

Ela deu um passou e então decidiu correr. Ele foi mais rápido e logo a pegou no colo e a jogou no sofá. Ela gritou por Sisi, gritou por sua mãe morta e pelos vizinhos. Mas ninguém a escutou, como nunca escutava. Malía começou a chorar desesperadamente. Ela soluçava e ela sorria. Aquele olhar. Aquele olhar terrível.

“Não tenha medo, querida.” Ele sussurrou.

E então Loretto atacou.

A menina não conseguiu ver de onde seu pai morto viera, mas ele estava ali. Ele jogou o homem mau no chão e avançou para o rosto dele. Primeiro ele mordeu o nariz de Thadeus e o arrancou. O padrasto de Malía gritava e de debatia. Tinha lagrimas em seus olhos. Loretto rosnou e atacou novamente mordendo o peito do homem mau. Depois ele começou a mastigar o estômago de sua vítima. Ele mastigou, mastigou, mastigou, até que seu rosto sumiu dentro do homem que agora sangrava muito. Thadeus ainda estava vivo e ainda gritava muito. Por fim, o homem morto levantou sua cabeça coberta de sangue e olhou em volta. Em cima da mesinha de centro da sala havia um cinzeiro de metal. Ele o pegou e começou a golpear repetidas vezes a cabeça do homem que minutos atrás estava tentando abusar de sua filha. Ele golpeou até não sobrar nada do gosto de Thadeus. O homem mau estava morto.


7


Thadeus abusou de Malía por muito tempo. Carmen sabia que nunca fez nada. Mesmo quando a menina implorava para que a mãe a salvasse, ela nunca movera um dedo. Loretto morreu de forma trágica, mas algo ou alguém fez com que ele voltasse para fazer justiça pela filha. Primeiro foi Carmen, que deixou que a

contecer. Depois foi Thadeus, o homem de bem da moral e bons costumes, que fez acontecer. No mesmo dia da morte do abusador, Malía teve que se despedir do pai. A missão dele foi cumprida e agora ele precisava voltar para seu tumulo. A garotinha chorou muito ao dizer adeus. Se Loretto tivesse lagrimas, com toda certeza também choraria. Agora ela estava sozinha. Sem pai. Sem mãe. Sem o homem mau, quem nunca voltaria a machucá-la.

Os dias se passaram e Sisi não voltara. Malía tentou se virar a forma que pode. Estava vivendo se cereais e vendo muita televisão. As vezes ela desenhava e depois dançava. Ela estava sozinha, mas estava feliz.

Então algo inesperado aconteceu. Em uma manhã de quarta-feira, cinco dias depois da morte do homem mau, a menina estava na cozinha comendo cereal. Alguém a observava. Ela abriu um sorriso que logo morreu. Havia um homem parado em frente a porta. A pele dele estava podre, as roupas estavam sujas, tinha pus escorrendo de suas feridas, o rosto estava desfigurado. E aquele cheiro... o cheiro de morte. Por um segundo ela pensou que fosse seu pai, por isso sorriu. Era Thadeus.


leo.felipes@hotmail.com

SOBRE:

Pindorama é a designação de um local mítico dos povos tupis-guaranis, que seria uma terra livre dos males. Foi também o primeiro nome atribuído ao Brasil pelos índios, antes da descoberta. Por analogia, um blog de Jornalismo Cultural seria “um espaço livre dos males”, um território onde a literatura e as artes encontram um terreno fértil para frutificar. Aqui você encontra a produção dos alunos do 6º Semestre de Jornalismo da UNIFAE, que estão construindo um blog coletivo, sob coordenação da Profª. Carmem Aliende.

Os alunos foram desafiados a produzir textos literários, críticas, resenhas, matérias e perfis relacionados  ao universo cultural, em suas várias vertentes - cinema, teatro, artes plásticas, dança, música, moda, literatura, gastronomia, etc. Entre os principais objetivos da atividade estão vivenciar a construção coletiva de um blog, percebendo suas peculiaridades e possibilidades de atuação profissional; aproveitar o potencial dos alunos que já têm alguma produção autoral para trocar experiências e motivar os demais; e criar formas de interação com o público.

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